terça-feira, março 18, 2008

Brigada de Costumes

O grupo parlamentar do PS não mais nada em que se preocupar? O desemprego, a precariedade, a desigualdade económica, ou até o ataque aos professores e ao ensino público e democrático, o ataque à soberania nacional, o envio de militares para o Afeganistão e Kosovo? Certamente haverão coisas mais importantes que criar uma legislação moralista que «proíbe a colocação [de piercings] na língua e na boca, bem como "na proximidade de vasos sanguíneos, de nervos e de músculos", o que inclui os órgãos genitais» (Público 15.03.2008). Se faltava regulamentação nesta actividade, certamente que esta se podia limitar à garantia de condições de higiene para o que recebe e o que efectua o piercing. Não era precisar o Estado limitar escolhas individuais. Com base em quê? Garantidas as devidas condições de higiene e precauções, o piericing da língua ou dos orgãos genitais não constitui uma ameaça à saúde do indivíduo. Esta limitação só pode assentar numa rejeição de um estilo, de um costume.

Os piercing tiveram um ressurgir na civilização ocidental moderna, mas tem uma larga tradição na história humana. O uso de piercing das orelhas (brincos), por homens e mulheres, faz parte da cultura europeia há centenas de anos, mas qualquer pesquisa mínima das culturas mundiais revela uma enorme diversidade de piercing. À esquerda vemos um artista nigeriano com um piercing da língua, certamente menos higiénico que as varas metálicas que tendem agora a ser usadas no ocidente. À direita vemos a colocação tradicional entre os Surma da Etiópia de um "prato" de madeira no lábio inferior. Várias práticas religiosas envolvem auto-mutilação através de piercings corporais como expressão de devoção à fé e sacrifício.
Faz sentido que se procure garantir que estas práticas ocorram com um mínimo risco para a saúde, mas daí a proibi-las?Mas o projecto lei, apresentado pelo deputado socialista Renato Sampaio, vai mais longe na seua regulamentação dos costumes, propondo a proibição de qualquer tipo de «piercings, tatuagens e de maquilhagem permanente a não emancipados e a menores de 18 anos», mesmo havendo consentimento dos pais. De novo, qual a lógica por detrás de tamanha limitação de costumes. A tatuagem então tem uma longa tradição na cultura europeia e mundial, que teve recentemente um ressurgir e alargamento. É uma forma de expressão corporal, que, mais uma vez, garantidas condições de higiene não constitui qualquer perigo à saúde. Diz Sampaio que «da mesma forma que um menor de 18 anos não pode comprar cigarros mesmo que leve uma declaração dos pais», não pode fazer tatuagem com consentimento paterno. Mesmo admitindo o dano do tabaco à saúde e a legitimidade do Estado em limitar a sua venda a menores, e esquecendo a incongruência de simultaneamente se permitir a venda de bebidas alcoólicas a menores, haverá que concordar que uma tatuagem em nada se assemelha à venda de tabaco. Isto é passar um atestado de estupidez às pessoas, e infringir os seus direitos de expressão com um moralismo que não tem lugar numa sociedade livre.
Para tomar posição sobre este assunto o nosso gosto pessoal é irrelevante. Eu cá não gostava de ter uma bola metálica na língua, ou ter a minha língua bifurcada, ou ter implantes subdérmicos. Mas a minha opinião, ou a do Renato Sampaio e sua brigada dos costumes, não é perdida nem achada quando o Zé ou a Maria tomam essa opção. Curioso este pensamento único ocidental, que apregoa «menos estado» no que diz respeito aos serviço públicos e à intervenção no mercado, mas depois acha-se incumbido de limitar as nossas liberdades e direitos.
Fonte: jangada-de-pedra.blogspot.com

Sem comentários: